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O servo dos servos de Deus

 

A actualidade internacional foi, na passada semana, surpreendida pelo anúncio da renúncia do Papa Bento XVI. Atitude inédita não era tomada, há cinco séculos, por um Bispo de Roma. E, embora muito discutida, aquando da grave doença de João Paulo II, o papa polaco, por vontade própria ou por influência de forças dominantes do Vaticano, ocupou a cátedra de Pedro até ao fim, com a aceitação dos fiéis.

Bento XVI teve o mérito de resignar, reconhecendo “não ser capaz de levar a cabo o ministério de Pedro, com a força física e espiritual que ele requer". A sua atitude inesperada, segundo alguns comentadores, foi “corajosa”, um “acto de humildade”. Para mim, foi uma decisão reveladora da sua lucidez face ao desempenho das funções apostólicas.

Servo dos servos de Deus” é como se têm designado os sucessores de Pedro, traduzindo a directiva de Jesus:”o maior entre vós faça-se como o mais pequeno, e o que manda como aquele que serve”. Ele próprio afirmou: “Eu estou no meio de vós como aquele que serve” (Luc. 22,27-29).

Contra esta directiva evangélica apresenta Jesus “os reis das nações que fazem sentir o seu poder sobre elas, e os que as dominam tomam o título de benfeitores” (Luc. 22,25-26).

Ao longo de quase toda a história eclesiástica, nomeadamente a partir do Séc. III com o Imperador Constantino, a estrutura hierárquica assemelha-se em tudo à do poder temporal e com ela tantas vezes se confundiu, num contra-testemunho que impede o exercício livre do anúncio do Evangelho e da denúncia.

O serviço e a atenção preferencial pelos pobres, pelos que sofrem, pelos desprotegidos, pelos sem-voz, se bem que filhos diletos de Deus, foram trocados pelas benesses dos poderes instituídos, pelo fausto, pela ostentação, pelos títulos honoríficos dos responsáveis que impuseram a sua autoridade prepotente através da intolerância doutrinária, dos autos de fé, do fogo da inquisição, da cristianização à força e não da missionação, do celibato castrador, pelo menosprezo da função da mulher, pela moral casuística que condena o sexo como o maior pecado e desvaloriza o mandamento do amor.

Quando João XXIII vendeu a tiara e entregou o dinheiro aos necessitados, julgava-se que o gesto, saudado pelo mundo cristão, teria consequências no ministério da Igreja. O Concílio do Vaticano II, cujo cinquentenário decorre, foi uma “lufada de ar fresco” pois pretendeu acabar com a postura eclesial afastada “das alegrias e das tristezas da humanidade”.

Muitos padres conciliares e teólogos peritos do Concílio, entre os quais Joseph Ratzinguer, defenderam uma autoridade eclesial partilhada na colegialidade dos Bispos, para dar um novo rumo à instituição. Passado meio século, as boas  intenções não passaram disso mesmo. O próprio Papa, reconhecendo-se incapaz para exercer o ministério, denuncia, na sua mensagem da quarta-feira de cinzas, a “hipocrisia religiosa”, as “rivalidades dentro da Igreja, divisões no corpo eclesiástico" que desfiguram o “rosto da igreja”.

Estes não são exemplos evangélicos que convençam  fiéis e não crentes a seguirem a “Luz das gentes” (Título da constituição sobre a Igreja).

É por isso que cada vez menos se fala na bíblica expressão do Povo de Deus que o Concílio consagrou (LG 3), significando toda a Igreja “serva e pobre”.

Há uma tarefa gigantesca para recuperar a mentalidade do Vaticano II, em boa hora convocado por João XXIII que, apesar da avançada idade, tinha objectivos pastorais, doutrinários e não apologéticos, e um espírito aberto aos sinais dos tempos.

Preocupações semelhantes deve ter o futuro Papa.

Enquanto o Povo de Deus e os Bispos do mundo inteiro não encontrarem forma mais representativa para escolher o sucessor de Pedro, que os cardeais encontrem uma personalidade nova, carismática e determinada, com as qualidades humanas e pastorais de que a Igreja e o Mundo tanto necessitam, capaz de limpar a má imagem do Vaticano, expurgando-o de carreiristas e de poderes clientelares.

A abordagem que a imprensa faz aos eventuais papáveis, é a prova de que a eleição do Papa está desvirtuada e se assemelha em tudo à dos poderes temporais. E não deve ser assim.

Na Igreja, a autoridade exerce-se pelo serviço da Palavra, pela partilha de bens aos necessitados e pelo exercício pastoral que visa a santidade. Por isso é que o Papa é o “servo dos servos de Deus”.

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